sábado, 30 de outubro de 2010

Desabafo de Samah Jabr, uma médica palestina.

Aquelas poucas pessoas que chegam a refletir sobre os aspectos morais, políticos e estratégicos da nossa luta, vêem-se confrontadas com a falta de perspectivas e os desgastes que o conflito causa à razão e à consciência.

Como avaliar a Resistência Palestina com o respeito e a justiça que lhe são devidos no quadro da longa história do conflito palestino-israelense?

A ocupação da Palestina tem por fundamento uma ideologia do século XIX que nega a existência de um povo. Ela seguiu uma agenda colonial fazendo valer certos "direitos divinos a uma terra sem povo".

Em resposta a esta agressão teo-colonial, a Resistência Palestina adotou a estratégia da guerra de um povo a fim de impor o reconhecimento da Palestina como uma nação desapossada, ao invés da qualidade de "nação não existente".

Ainda hoje os palestinos continuam a viver sem dispor de um Estado, nem de forças armadas. Nossos ocupantes submetem-nos a toque de recolher, a expulsões, a demolições de casas, a tortura legalizada, e a toda uma panóplia altamente elaborada de violações dos direitos do homem.

Nada pode justificar a comparação entre o nível de responsabilidade oficial à qual os palestinos estão adstritos pelas ações de alguns indivíduos, com a responsabilidade de violência sistemática e intensa contra uma população inteira, praticada com toda a impunidade pelo Estado judeu.

A imprensa americanoa chama "terrorismo" à nossa busca de liberdade, e assim o palestino é tido como o protótipo internacional do terrorista. Esta política moldou a opinião pública ocidental tendo por conseqüência, uma tomada da posição internacional concretizada na tendência a descrever as violências cometidas contra civis palestinos com uma linguagem neutra. As vítimas palestinas ficam reduzidas a simples estatísticas anônimas, ao passo que as vítimas israelenses são pintadas com palavras e imagens fortes. Esta distorção sobre a Resistência Palestina abafou qualquer diálogo razoável.

Muitos dos nossos esforços para desafiar o cruel domínio do ocupante, são reduzidos a "ameaça do terrorismo", como se devêssemos desculpar-nos permanentemente, e nós próprios condenarmos a nossa legítima Resistência; e isso apesar da ausência de definição correta do termo "terrorismo", e do fato de que o direito à autodeterminação pela luta armada é previsto e autorizado pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas, referente à autodefesa.

Como é possível que a palavra "terrorismo" seja aplicada tão à vontade contra os indivíduos ou grupos que utilizam bombas artesanais, e não aos Estados que empregam armas nucleares (urânio empobrecido) e outras armas proibidas, assegurando a continuada dominação do opressor?

Israel, EUA e Grã-Bretanha encontrar-se-iam, obviamente, à cabeça da lista dos Estados exportadores de terrorismo, devido às suas agressões militares contra a população civil na Palestina, no Iraque, no Sudão e alhures.

Mas "terrorismo" é um termo político de que se serve o usurpador colonialista para desacreditar aqueles que resistem, do mesmo modo que os afrikanners e os nazistas qualificavam de "terroristas" os combatentes negros sul-africanos e os partisans da Resistência francesa.

As pessoas que vivem em condições desumanas durante toda a vida são, infelizmente, capazes de atos desumanos. O que resta aos milhares de desabrigados de Rafah, senão a Resistência? Não se trata do Islã, trata-se da natureza humana, comum a homens e mulheres, religiosos, seculares e agnósticos.

Outro fator decisivo na Resistência Palestina, é a história aflitiva das sucessivas negociações de paz, e a ausência de apoio internacional.

As negociações com Israel não trouxeram senão promessas de autonomia sobre o nosso empobrecimento, sempre reforçando a vontade do poderoso, e consolidando as desigualdades como bases de uma ocupação concebida para durar. A ausência de um mediador honesto nas negociações de paz, é a coisa mais flagrante.

As Nações Unidas foram incapazes de tomar medidas para defender os direitos dos palestinos. O mundo inteiro não foi capaz de propor qualquer remédio para as inúmeras feridas que afligem os palestinos. Em muitas ocasiões Washington utilizou o seu direito de veto no Conselho de Segurança para se opor ao consenso mundial que pedia a presença de observadores internacionais na Cisjordânia e em Gaza.

O direito internacional concede a qualquer população, combatendo uma ocupação ilegal, o direito de utilizar "todos os meios à sua disposição" para se libertar, e os povos ocupados "têm o direito de procurar e de receber apoio" (cito aqui várias resoluções da ONU).

A Resistência armada foi posta em prática pela revolução americana, pela Resistência afegã contra a União Soviética, pela Resistência francesa contra os nazistas, e pelos judeus resistentes nos campos de concentração, nomeadamente no afamado gueto de Varsóvia. Da mesma forma, a Resistência Palestina é o resultado de uma situação de ocupação ilegal, e de opressão de um povo em seu conjunto. O grau de violência pode variar, pode acontecer mesmo que a Resistência seja essencialmente não violenta.

Apesar de todas as injustiças de que são objeto, os palestinos continuam resolutamente a viver, a estudar, a orar, e a cultivar as suas terras num país ocupado. Em alguns casos, eles resistem ativamente e recorrem a atos violentos. Esta Resistência violenta pode ser, ou defensiva (e portanto, no meu íntimo, moralmente correto) como a defesa por exemplo, no campo de refugiados de Jenin pelos combatentes, face ao avanço das máquinas da morte israelenses; ou tomar a forma de atos ofensivos inaceitáveis, tal como o bombardeamento de civis israelenses a festejarem a páscoa judia.

Contudo, em ambos os casos, são indivíduos que escolhem a forma de Resistência, e a escolha que eles fazem não é obrigatoriamente aquela do conjunto do povo palestino. Entretanto, como já constatamos, quer a Resistência seja violenta, ou não violenta, ela é igualmente respondida por uma deliberada e brutal violência de Estado, por parte do democrático governo israelense e do seu exército. A morte da militante pacifista americana Rachel Corrie é a prova evidente.

"Onde está o Gandhi palestino?", perguntam-se alguns. Os nossos "Gandhis" estão ou na prisão, ou no exílio, ou enterrados. Nós não somos centenas de milhões. Um povo de 3,3 milhões e sem armas, fica vulnerável face aos 6 milhões de israelenses, todos virtualmente soldados ou reservistas. Não se trata de uma colonização econômica, os israelenses praticam a depuração étnica a fim de se apossar da terra dos palestinos para o único proveito dos judeus.

Já em 1938 Gandhi contestava e repudiava os argumentos do sionismo: "Minha simpatia não me faz esquecer a necessidade de justiça; o pedido por um lar nacional para os judeus não me convence; o argumento para este lar, é baseado na Bíblia, e na cobiça com que os judeus postulam o seu retorno à Palestina; por que não podem eles, como os demais povos da terra, estabelecer o seu lar no país onde nasceram e onde ganham a sua vida?".

Gandhi repudiou claramente a idéia de um Estado judeu sobre a "terra prometida", fazendo notar que "a Palestina na concepção bíblica não é um tratado geográfico".

A Resistência violenta é o resultado de uma ocupação militar desumana que inflige arbitrariamente castigos cotidianos; que nega a possibilidade da própria existência, dos meios de subsistência e que destrói sistematicamente toda a perspectiva de futuro do povo palestino.

Os palestinos não foram à terra de um outro povo para destruí-lo, ou despojá-lo dos seus bens.

O nosso desejo não é nos fazermos explodir para aterrorizar os outros. Nós queremos que as pessoas possam ter, por direito, uma vida decente sobre a nossa terra natal.

A segurança israelense é julgada mais importante do que os nossos direitos elementares de existência; as crianças israelenses são consideradas mais humanas do que as nossas; e a dor israelense mais inaceitável do que a nossa.

Quando nos rebelamos contra as condições desumanas que nos esmagam, nossos críticos comparam-nos a terroristas, inimigos da vida e da civilização.

As leis internacionais e os precedentes históricos de numerosas nações, reconhecem o direito de uma população, quando ela se encontra sob o jugo de uma opressão colonial, a tomar armas na sua luta de libertação. Por quê a situação seria diferente no caso dos palestinos? Se é uma regra do direito internacional, não é portanto de aplicação universal?

Os americanos estabeleceram na sua constituição direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade. É essencial que o direito à vida seja mencionado em primeiro lugar. Afinal de contas, sem o direito a permanecer com vida, a proteger-se dos ataques, a defender-se, os outros direitos perderiam o sentido e a razão de ser. A lógica decorrência deste direito, é o direito à autodefesa.

Nós, palestinos, continuamos a enfrentar uma ocupação brutal expondo nossos peitos desarmados, e nossas mãos nuas. Creio no diálogo entre palestinos e israelenses, mas as negociações não bastam por si próprias: elas devem ser acompanhadas pela Resistência contra a ocupação.

Entretanto, enquanto os israelenses nos acenam com o diálogo, continuam a construir assentamentos para aqueles "colonos", e a erguer uma muralha que nos encerrará e violará ainda mais os nossos direitos.

Por quê deveríamos abandonar o nosso direito de resistir? Para continuarmos a viver sob o absurdo domínio do usurpador assassino?

Viver sob a opressão e submeter-se à injustiça, é incompatível com a saúde psicológica. A Resistência não é só um direito e um dever, é também como um remédio para os oprimidos.

Independentemente de qualquer opção estratégica ou pragmática, na Resistência reside a expressão da nossa dignidade humana.

A Resistência violenta deve ser sempre defensiva e utilizada em última instância. Entretanto, é importante distinguir os alvos aceitáveis (militares) dos alvos inaceitáveis (civis) e estabelecer limites ao uso das nossas armas. O colonialista opressor, por sua vez, não deve ficar isento destes mesmos princípios.

A história da nossa Resistência deve ser olhada e avaliada do ponto de vista do direito internacional, da moralidade, da experiência e do aspecto político, tendo em conta acontecimentos cronológicos e contextuais, concedendo o seu justo lugar aos direitos do homem, às regras internacionais, e às normas de comportamento amplamente admitidas pela comunidade internacional.

Os palestinos devem procurar alternativas não violentas e eficazes como forma de Resistência. Elas poderão persuadir os progressistas de todo o mundo a juntarem-se ao nosso combate.

Afinal de contas, a força do palestino reside na sua moralidade, nas suas virtudes humanas; cabe a nós encontrar recursos morais e humanitários a fim de proteger esta força.

A Resistência da Universidade palestina

Através da Ordenação Militar 854 (uma das milhares de ordenações do exército judeu que modificam a legislação em vigor na Palestina ocupada) é Israel quem aprova as licenças de funcionamento de todas as instituições educacionais palestinas, o que implica no controle, pelas forças de ocupação, do pessoal acadêmico, dos programas e currículos, e dos manuais de ensino das escolas.

Outro golpe que afetou gravemente o funcionamento das universidades palestinas nos territórios ocupados, foi que muitos professores considerados "estrangeiros" (em realidade palestinos com passaportes de outros países) foram intimados a assinar uma declaração, segundo a qual, "o professor compromete-se a não dar qualquer apoio à OLP". Com a veemente recusa dos professores a assinarem esse ignominioso documento, a repressão foi violenta:

Imediatamente dezoito professores foram expulsos da Universidade An-Najah, enquanto outros três que estavam em outros países, foram proibidos de voltar à Palestina; dessa maneira, a Universidade de Bir-Zeit perdeu cinco professores, e a Universidade de Bethléem perdeu outros doze.

Sempre com a finalidade de eliminar a resistência cultural palestina, a prisão de estudantes e professores, pelos motivos mais fúteis, é comum em todas as universidades palestinas.

Os estudantes e professores presos são confinados na prisão de Fara'a, no Vale do Jordão; e conforme a "Lei de urgência", ainda do período do Mandato Britânico, o preso pode ficar incomunicável por até dezoito dias, sem nenhuma acusação e sem poder avisar a família, ou indicar um advogado. O "tratamento" é absolutamente degradante, e vai desde insultos a torturas.

* Samah Jabr é médica palestina. Filha de um professor universitário e de uma diretora de colégio, foi cronista do Palestine Report de 1.999 a 2.000, com a rubrica Fingerprints. Desde o princípio da Intifada contribui regularmente com o Washington Report on Middle East Affairs e com Palestine Times de Londres. Além disso recebeu o prêmio do Media Monitor's Network pela sua contribuição sobre a Intifada, e alguns dos seus artigos foram publicados no International Herald Tribune, Philadephia Inquirer, Australian Options, The New Internationalists e outras publicações. A autora deu várias conferências no estrangeiro, nomeadamente na Universidade Fordham e no St. Peter's College de Nova York, em Helsinque e em várias universidades, mesquitas e igrejas na África do Sul.

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